Um filme dirigido por Murilo Salles com Leandra Leal.
Baseado na obra de Clarah Averbuck.

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Por Carlos Alberto Mattos

É particular e apreciável a maneira como Murilo Salles, o diretor, tem se inserido no discurso geral do cinema brasileiro desde os anos 1980. Quando começávamos a refletir sobre a ditadura militar como parte do nosso passado, ele retratou a solidão e o vazio de uma nova geração vivendo certa orfandade. Era Nunca Fomos Tão Felizes, um primeiro filme que a gente nunca esquece. No momento em que o governo Collor fodia com a vida brasileira, ele e Sandra Werneck traduziram a situação no curta-protesto Pornografia. Mais adiante, quando apenas se insinuava a onda de violência urbana que assola o cinema brasileiro recente, ele deslocou o ângulo para o imaginário de crianças da favela durante uma ação desastrada. Era Como Nascem os Anjos, um clássico do gênero.

Mesmo no aparentemente menos ambicioso – e muito incompreendido – Seja o que Deus Quiser, Murilo não deixou de surpreender com uma inversão de estereótipos que dizia muito sobre equívocos e obsessões do Brasil atual. A juventude continuava a ser o seu plantel predileto de personagens. E nada mais é que um porre de juventude a sua obra-prima que chega agora às telas. Nome Próprio é talvez o filme mais contemporâneo que o cinema brasileiro poderia produzir neste momento.

Estamos a muitas milhas de distância tanto dos chavões da violência quanto dos xavecos das historinhas bem-comportadas, que têm garantido ao filme brasileiro alguns favores do público. Nome Próprio disputa platéias com os bons filmes europeus e asiáticos da praça, ou com os melhores quitutes provenientes dos EUA. Isso porque , como poucos outros, troca a cor local pelos tons de um “país” interior, mais recôndito e insondável. Sua ação se passa dentro de uma cabeça, e não é de uma cabeça qualquer.

Camila Lopes, filtrada da autobiografia ficcional de Clarah Averbuck, é uma criação arrebatadora de Murilo Salles e Leandra Leal. Uma menina com a alma nas pontas dos dedos e o destino a curto prazo condicionado pelo tempo da conexão discada (estamos em 2001). Algo predadora, dada a barracos, criança e tigresa alternadamente, Camila tenta destilar sua solidão nos encontros de bar, nos copos de vodca e na devora de cigarros, na fantasia de um príncipe online, no corpo-a-corpo com as palavras que espalha pela rede sem esperar retorno nem compensação. Tudo é mar onde ela quer se dissolver. Tudo é vício, paixão e poesia.

Ela é a síntese de uma sensibilidade nova, que o cinema brasileiro ainda não tinha conseguido (na verdade, nem procurado) representar. E o desafio brilhantemente vencido por Murilo Salles foi o de tornar palpável diante de nós os sinais dessa sensibilidade. Sua câmera flutua sobre os corpos, acaricia-os ou espreita-os como um olho livre, sem peso. Mas o que esse olho desmaterializado vê é de uma visceralidade transbordante. As unhas raspadas de Camila; sua relação corporal com o set, os objetos e os demais personagens; a exteriorização das frases como textos sobre a tela – tudo isso remete a um movimento no sentido de transformar o sentimento em matéria exposta. Todas as dicotomias que dilaceram e ao mesmo tempo produzem essa Camila que nos é dado conhecer – angústia e hilaridade, decepção e dissipação, virtualidade e fisicalidade – ganham expressão poderosa nesse objeto fílmico singular.

Ao final, depois de desnudar-se em tantos sentidos quantos possamos imaginar, Camila se reparte em duas para, quem sabe, se apaziguar. A quebra da identidade é a suprema realização de um desejo de dar-se ao mundo e ao mesmo tempo manter-se coladinha a si mesma. Desconfio que Nome Próprio é sobre essa inquietação tão comum em tempos de desmaterialização, interação desenfreada e, contraditoriamente, isolamento cada vez maior.

Um comentário:

Luiza Rudge Zanoni disse...

"...ela é uma síntese da sensibilidade nova."

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