"Criar uma literatura espontânea, vivenciada, tecida no coração sem os ardis
da cabeça. Escrever só sobre si mesmo. O poeta-obra-de-arte. Somos sagrados
em nossas próprias sementes. A viagem é para dentro de si mesmo."
Jack Kerouac
“A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta. Talhar a obra literária sobre as próprias formas do que não basta é ser impotente para substituir a vida.” (Fernando Pessoa)
A briga promete: de um lado do ringue, o escritor beat Jack Kerouac defende o uso da vida como matéria-prima da escrita, chegando a afirmar que a vida, em si mesma, já constitui a obra. Do outro lado, o poeta português Fernando Pessoa argumenta que a literatura existe justamente porque a vida não é suficiente, portanto tomá-la como base é manter-se longe da verdadeira arte. Por mais antiga que seja essa discussão, ela permanece relevante e se torna mais crucial ainda com a proliferação dos blogs de escritores, que geraram a expressão “literatura de blog”, rejeitada pela maioria dos que são assim designados.
Pra botar lenha nessa fogueira, separamos argumentos dos dois lados, de gente respeitada e importante. Alguns são conhecidos por suas posições, como o poeta João Cabral de Melo Neto, adepto do trabalho árduo e não do uso da vida em seus poemas:
“Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;
não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;
mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola”
(João Cabral de Melo Neto)
Cabral acredita na palavra, não no fato. Na labuta, não no acaso. Não há na sua obra referências diretas a acontecimentos, não há sinal de elementos auto-biográficos: tudo é linguagem, tudo é literatura.
Alguns surpreendem. Quem diria que Guimarães Rosa, de prosa tão inventiva e trabalhada, afirmaria a presença da vida cotidiana em sua obra dizendo que “[gosto de] deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas”. Na realidade mesmo suas invenções de linguagem nascem de elementos do cotidiano. Foi uma viagem do escritor ao sertão mineiro que nasceu sua obra-prima, “Grande Sertão: Veredas”. Os dez dias de convivência entre vaqueiros renderam histórias, jeitos de contar, e uma percepção aguçada da fala sertaneja, que Rosa recriou brilhantemente. Recriou: ele era mesmo da vida como ponto de partida.
A escritora paulista Márcia Denser vai ainda mais fundo nessa linha, se colocando ao lado dos beats como Kerouac ao afirmar que “quanto a mim, meu “fazer literário” é algo construído no cotidiano, constituindo-se o viver e o escrever uma só e a mesma coisa.” Isso não impediu o jornalista e escritor Paulo Francis de exaltar sua escrita, situando-a “entre os raros criadores de linguagem, aqueles que têm algo de muito novo a dizer”.
Já James Joyce não nega sua preferência pelo trabalho incessante que toma o tempo da vida, já que declara que "a única exigência que faço aos meus leitores é que devem dedicar as suas vidas à leitura das minhas obras". Daí se deduz que, pra não ser injusto com os pobres leitores que iam gastar todas as horas da vida lendo seus trabalhos, ele só podia fazer o mesmo ao escrevê-los!
A defesa do uso da vida como ponto de partida tem adeptos entre novas e antigas gerações:
“A maior desgraça que pode acontecer a um artista é começar pela literatura, em vez de começar pela vida.” (Miguel Torga)
“A partir do momento em que as coisas estão escritas já não importa mais se aconteceram ou não: são apenas histórias que devem ser lidas e apreciadas como tal. (...) Não é tudo verdade, não é tudo mentira, não é tudo ficção - é arte.” (Clarah Averbuck)
"Desde logo se propôs ela combater o que chamava literatura livresca em nome do que chamava literatura viva. (...) Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e por isso mesmo passa a viver de vida própria.”
(Florbela Espanca)
E quando o assunto chega na contemporaneidade dos blogs, tudo é novo e é ainda indefinido, dando margem a discussões ainda mais calorosas. A estudiosa de literatura Heloísa Buarque de Hollanda é uma das defensoras de que existe uma “nova literatura” circulando através da internet, e chegou a organizar uma exposição com essa produção. Ela declarou na época que "o nosso desafio foi selecionar o conteúdo da exposição com novos paradigmas, buscando novos padrões para o conceito de qualidade. É importante pensar sob um outro prisma, no qual o contexto flexível e descentralizado dessa produção também seja parte de uma forma literária”.
Mas alguns dos próprios escritores acham que não há diferença entre sua produção e a dos livros impressos.
“Repetindo, repetindo o que já disse tantas vezes, blog não é um estilo, tampouco uma tendência. É um meio, assim como um site ou uma revista on-line. A diferença é o formato, não o estilo, nem tudo é em primeira pessoa, muito embora eu acredite piamente que falando de nós mesmos chegamos muito mais aos outros do que falando dos outros sem propriedade.”
(Clarah Averbuck)
E vocês? De que lado do ringue vão ficar?
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