Um filme dirigido por Murilo Salles com Leandra Leal.
Baseado na obra de Clarah Averbuck.

Estaremos publicando ao longo desta semana a entrevista feita por Felipe Messina e Juliano Gomes com Murilo Salles, a cerca do processo de construção do filme Nome Próprio. A cada dia, postamos uma das seis perguntas.

FELIPE MESSINA:

Nome Próprio é um filme focado primordialmente em seu personagem principal. Desde o principio acompanhamos os choques e as rupturas que Camila sofre com seus espaços e as relações que a circundam. É possível absorver uma leitura dual entre uma vivência impregnada de um espírito de liberdade ou de um sabor de aprisionamento. Talvez uma falsa liberdade, talvez uma falsa prisão, talvez uma prisão libertária. Dentre os espaços construídos no filme, notamos fortemente três camadas principais, três espaços principais: o espaço das relações pessoais, o espaço da criação artística e o espaço físico do mundo e seus cubículos de cimento. , A imagem e as relações destes lugares são fortemente construídas do ponto de vista visual. Eles se confundem e se mesclam na trama e no quadro. A vida pessoal com o blog e seus leitores, os quartos e os planos fechados (em circunstâncias que beiram a claustrofobia) e as letras que invadem a tela. Cada qual com uma marca específica mas que, em alguns momentos, transbordam uns para os outros. Como foi o processo de elaboração destas imagens, da formação dessas diferentes camadas? Em que momento do processo de criação do filme esta questão surgiu? Era uma preocupação inicial já na elaboração do roteiro? Como se deram as etapas de construção desta interação dos espaços de Camila?

(Felipe Messina, jornalista formado pela UFRJ, cobriu o circuito de festivais de cinema para o site Imprensa Jovem (2000 a 2004). Atualmente escreve para o DocBlog da Globo.com, editado por Carlos Alberto Mattos. Dentre os textos destacados: cobertura e redação de resenhas do É Tudo Verdade (2007/2008) e Festival do Rio (2007). Como realizador, produz com outros parceiros um filme sobre o projeto Semente da Música Brasileira e seus bailes no Clube dos Democráticos)


MURILO:

Esse filme fala mesmo pela imagem; mas a imagem vista em todo o seu complexo, quer dizer, com texto, com som. Vc fala em três camadas, mas a sonoridade também poderia ser uma quarta camada. O Léo tinha comentado que achava que a quarta camada seria o imaginário de Camila. Eu acho que isso está na mescla dessas três camadas que vc comenta; a quarta camada seria mesmo o som, o uso do som.

O processo de elaboração das imagens foi feito aos poucos, foi sendo construído por camadas mesmo. Existiu primeiro um olhar sobre o trabalho da Clarah Averbuck, sobre o que me interessava na Clarah. Era um olhar sobre as historias dela, não um olhar sobre a sua literatura. A literatura dela não me interessava, nunca me interessou. Me interessava o factual das histórias e também a operação que ela fazia. Na verdade, esse filme fala mais da Clarah do que do livro dela. O que me interessa é a sua operação: uma menina querendo ser escritora, que se isola, que escreve um blogue e que usa a sua vida para criar os contornos da sua literatura.

Existia também a questão sobre a construção de narrativa, que pra mim é também o segundo vértice ou vertente importante. Na verdade, eu acho que esse filme tem duas camadas, com subcamadas que se interpolam. Para mim, existe a camada que é a historinha factual e existe a história que está sendo narrada.

Como você mesmo coloca, Felipe, essa é uma parábola da contemporaneidade; uma falsa sensação de universalidade que a gente tem através da Internet. Esse paradoxo acaba criando uma clausura de verdade. Nós somos obrigados a estar fixados à tela do computador para estarmos conectados com o mundo, e isso é um paradoxo. Hoje em dia, com a Internet mudando para o celular, talvez isso mude. Mas, no momento em que o filme se passa, em 2001, não havia jeito, para ganhar a liberdade virtual você tinha que perder a real, tinha que ficar confinado.

Então, existe o nível das histórias da Camila, da sexualidade de Camila, da afetividade de Camila, dos transbordamentos dela. Mas, tem também existe toda uma intenção de criar um segundo nível, o nível de quem está escrevendo essa história e que vai possuindo lentamente o filme. O primeiro corte tinha uma câmera que era o olhar daquele personagem final. Acabei cortando essas câmeras da montagem porque tive medo de ficar muito claro, de bandeirar demais. Eram câmeras em geral mais tremidas, uma linguagem meio MTV, camerazinha tremidinha, na mão, fechada ... Eu não queria trazer isso para o filme, não tinha nada a ver; esse filme é um filme clássico, ele é filmado classicamente, apesar de ter planos bacanas, ele tem uma tranqüilidade na linguagem que foi muito procurada, pensada.

O que ficou no filme foram as câmeras de cima, que provocam um lugar de um olho, um olhar de Deus. Por exemplo, quando eles estão transando na praia, a Camila e o namorado que ela rouba da amiga, da Mary, é um olhar de Deus, de cima; como se levantasse a pergunta: quem está olhando ali? E não é apenas a câmera que aponta para esse personagem que está "fora". O texto da praia, que aparece escrito sob a imagem da transa, é pungente, domina e avassala a cena. Aquele é um texto que avassala, porque aquilo é um pensamento! Tem alguém pensando aquelas frases, aliás, a estrutura toda da praia; desde a utilização do sambinha. A cena do sambinha foi criada para gerar estranhamento com aquela situação, um distanciamento mesmo, porque aquela música é a única música que não tem nada a ver com o filme. Aquilo é para nos remeter à idéia de que tudo ali pode ser ficcional. Por exemplo, a chegada do Henry na praia, como é que ela se dá? Tudo ali está no limiar. E aquela praia? Onde é aquela praia? Se você observar bem, não tem nenhum carro passando. A gente ficou ali esperando até não passar nenhum carro. É a Av. Atlântica, mas ela está vazia, ninguém passa ao fundo, nenhum carro passa ao fundo, não tem seres habitando aquela cidade, é uma cidade vazia.

É nesse sentido que foi feita toda a construção do filme. A gente filmou em três apartamentos. Tinha uma operação inicial mais radical, que ia desvendar essa questão. Só que, já na primeira montagem, ficou claro que era muito didático. Revelava-se muito claramente a casa, o nome da autora final. A autora final, aquela da última cena do filme, tem um nome, Beatriz. É ela lá no bar com o homem de Ribeirão Preto. É a Beatriz, não é Camila. Enfim, é real. Tudo nesse filme é real, por isso ele se chamava uma história real.

Existe realmente essa tentativa de construir uma operação de alguém que está pensando aquele narrar, possuindo aquele narrar. Por isso, os textos vão para a tela. Isso pode parecer uma outra camada, mas não é. É a mesma camada. Não existe essa quarta camada que o Léo Bittencourt associava à imaginação. Na verdade, esse filme só tem duas camadas: o real, a historinha de Camila, e o pensado, o construído, que talvez seja a história que Beatriz esteja construindo e impregnando o filme, possuindo todo o filme com ela. No entanto, ela só se revela totalmente na última cena.

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